A Bolota
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A bolota enquanto fruto de diversas cultivares do género Quercus, faz parte da tradição culinária e medicinal das culturas e regiões onde estas espécies são encontradas. Para além da farinha de bolota, utilizada no fabrico de pão e bolos, a bolota tostada é utilizada também para a produção de uma bebida aquosa, recomendada pelas suas propriedades benéficas para a saúde enquanto antidiarreico e adstringente. Para além do seu valor calórico, as bolotas de Quercus são ricas em polifenóis que são compostos com atividade antioxidante comprovada.
A bolota é um tipo de fruto seco, semelhante à avelã, constituída por uma única semente envolta por uma casca lenhosa com uma cápsula em forma de cúpula.
Sendo o montado essencialmente constituído por carvalhos — azinheiras (Quercus rotundifolia), sobreiros (Q. suber), carrascos (Q. coccifera), carvalhos cerquinhos (Q.faginea) e negrais (Q.pyrenaica), para além de outras espécies com menor representatividade, é natural que a bolota, produzida por todos eles, se tenha transformado num dos recursos mais amplamente aproveitados neste sistema.
Na Idade Média, a bolota, antes da introdução do milho e da batata na Europa, era um alimento base na alimentação das classes mais pobres, tal como a castanha, podendo ser encontrada um pouco por todo o mundo.
As bolotas de muitos carvalhos são comestíveis enquanto cruas, logo após a sua colheita, sendo outras demasiado amargas para um consumo geral sem tratamento prévio que reduza o nível de taninos.
Em muitas receitas a farinha de milho pode ser substituída por farinha de bolota. As massas alimentares, pães e bolos feitos com farinha de bolota encontram-se na culinária tradicional um pouco por todos os locais onde esta espécie vegetal existe, podendo ser utilizadas em vez de castanhas, grão-de-bico, frutos secos ou azeitonas, numa variedade de pratos. No sul da Península Ibérica, incluindo Portugal, podemos apreciar o Licor de Bolota, uma bebida alcoólica tradicional, constituída por aguardente aromatizada com bolota doce de azinheira, utilizado na doçaria tradicional com fins aromáticos.
Para além do seu valor calórico, as bolotas são ricas em polifenóis, nomeadamente taninos, que são compostos com atividade antioxidante comprovada.
Até há poucos anos, o homem vivia numa ligação muito próxima com o meio envolvente, relação que praticamente desapareceu na atualidade, com o desenvolvimento de um estilo de vida mais urbano.
A coevolução que ocorreu ao longo da história, do Homem com a natureza, deu origem a muitas das paisagens que atualmente consideramos como possuidoras de elevado valor ecológico. Os montados são uma destas paisagens culturais com elevada biodiversidade e interesse para a conservação.
Na sua evolução conjunta o homem soube dominar os bosques de carvalhos, através do controle dos matos e do pastoreio, conduzindo-os a um ecossistema bastante estável e biodiverso e retirando ainda uma série de produtos e serviços de uma forma continuada (madeira, cortiça, frutos silvestres, mel, resinas, caça, pecuária).
Atualmente, a bolota é aproveitada essencialmente pelo gado e representa um recurso, conjuntamente com as pastagens naturais, bastante significativo.
No entanto, em períodos mais recuados, a bolota foi um alimento importante para as pessoas, tal como o confirmam os dados arqueológicos em Portugal e Espanha e fontes escritas romanas e gregas.
Pais (1996) refere, por exemplo, para a Alcáçova do Castelo de Mértola, entre finais do século XI e inícios do século XIII, a existência de bolotas, entre o material mais antigo encontrado. Estas seriam, segundo propõe, utilizadas para fazer farinha, conjuntamente com trigo.
José Mattoso (1993) defende que a alimentação humana no período do Bronze Final (1000 anos a.C.) era complementada com bolota. Segundo este autor seria consumida pilada, sob a forma de papas ou pão, após ser torrada e triturada. Existia então uma técnica de moagem de cereais, em que se misturavam essencialmente milho, trigo e bolota e fazia uso de moinhos feitos em granito e, de forma geral, ovais.
A referência escrita mais antiga sobre a utilização da bolota para a alimentação humana corresponde a Hesíodo (1978), poeta grego do século VII a.C., que referiu na sua obra “Os trabalhos e os dias” – “A terra produz bastante sustento… a azinheira está carregada de abundantes bolotas nos seus ramos mais altos e de abelhas nos do meio”.
A Arcádia foi negada por Sibila aos espartanos quando estes consultaram, em Delfos, as suas possibilidades de êxito na invasão que planeavam, segundo nos conta Heródoto (1977:140) (século V a.C.): “Pedis-me a Arcádia? Muito me pedis. Não vo-la darei. Na Arcádia há muitos homens que comem bolotas e que te deterão”.
Na Citânia de Briteiros, foram encontradas bolotas torrificadas e mós de pedra que se pensa terem sido utilizadas para moer as bolotas em moinhos manuais (Alarcão-e-Silva, 2001) (100 anos a.C.).
Já Estrabão, geógrafo e historiador romano (58 a.C. – 25 d.C.) se refere ao povo lusitano, dizendo que “(…) Na quarta parte do ano não se mantêm senão de bolotas, que secas e trituradas, se moem para fazer pão, o qual pode guardar-se por muito tempo (…)” (Amorim, 1987)
O aproveitamento da bolota como alimento por parte dos povos pré-romanos peninsulares durante a 2ª Idade do Ferro também nos é descrito por outro autor latino como Plínio o Velho (23 d.C).
“É coisa certa que hoje em dia a bolota constitui uma riqueza para muitos povos até em tempos de paz. Havendo escassez de cereal secam-se as bolotas, escolhem-se, amassa-se a farinha em forma de pão. Atualmente, inclusivamente nas Espanhas a bolota figura entre as sobremesas. Tostada em cinza fica mais doce.”
Da mesma forma Pausanias (1994) (170 d.C.) ao falar da Arcádia (região central da antiga Peloponeso, na Grécia) cita Pelasgo, o patriarca mítico dos primitivos povoadores autóctones gregos que os ensinou a alimentarem-se com as bolotas do carvalho asiático e a rejeitar as ervas e raízes prejudiciais.
Pais (1996) refere, por exemplo, para a Alcáçova do Castelo de Mértola, entre finais do século XI e inícios do século XIII, a existência de bolotas, entre o material mais antigo encontrado. Estas seriam, segundo propõe, utilizadas para fazer farinha, conjuntamente com trigo.
Contemporâneas destas representações são as diversas medidas que, desde pelo menos finais do século XII, protegem os montados da extração de lande e da bolota (Castro, 1965).
Existem uma série de representações, em iluminuras de Livros de Horas, que demonstram como a bolota representava um recurso importante. Um exemplo é a representação do mês de Novembro no Missal Antigo do Lorvão, datado do século XV, que corresponde a uma imagem de porqueiros em pleno varejamento da bolota.
Jerónimo Baía descrevia na sua Fénix Renascida (séc. XVII), «Passas, figos e bolotas/he cousa desenfadada». Comiam-se cruas, mas mais habitualmente assadas e cozidas. Uma sopa de bolotas, com feijão (mais recentemente com batata) e pão era habitual no Alentejo, onde também se fabricavam as azevias, doce de bolotas pisadas com açúcar e mel, a que se podia acrescentar feijão, grão e chila (Amorim, 1987).
Ainda no século XVII, encontramos normas com o mesmo fim. É de 1660 uma “Postura dos q’varejão lamdem ou boleta” e que especifica: “(…) qualquer pessoa que for achada varejando lamdea ou boleta ate dia de são Martinho pague de penna duzentos rs (…) e esta pena pagara qualquer pessoa que for achada com vareja dura em qualquer Azinhal ou Sovera antes do dia de são Martinho não sendo seu dono e quanto a bolota pêra comer a não apanharão até dia de todos os santos salvo se for seu dono ou a quem ele der lisença (…)”. (Fonseca, 2004)
A utilização da bolota para a alimentação humana era já vista com maior preocupação e a existência da lei demonstra que era uma prática corrente, pelo menos, entre a população de mais fracos recursos. Por esta razão, a data a partir da qual a recolha era permitida, para este fim, era antecipada para o Dia de Todos os Santos. (Fonseca, 2004)
Já bem mais tarde, o naturalista Link (1803) (séc. XVIII) também observa este facto durante a sua passagem pelo nosso país, comentando: “les hommes les manges grillé, et ils nónt point un goût désagréable. Ils ne servent cependant qu’à la nourriture des pauvres.” (Fonseca, 2004)
Era consumida de diversas formas tendo chegado mesmo a fazer parte do reportório da doçaria conventual (séc. XIX). É exemplo disso a seguinte receita: “Queijinhos de bolota: Ponha 500 g de açúcar em ponto de cabelo e deite 500 g de bolota, pelada e ralada. Junte uma clara de ovo e um pouco de canela. Retire do lume depois de ferver e deixe arrefecer. Com essa massa fina molde com as mãos uns queijinhos, metendo no meio recheio de ovos-moles.” (Fonseca, 2004)
Esta receita pertence ao livro de Soror Maria Leocádia Tavares de Sousa que professou no Convento da Conceição de Beja.
Uma forma muito vulgar de preparar a bolota doce para consumo do homem, foi e ainda é, grelhá-la nas brasas do borralho.
Fonseca, A. (2004). O Montado no Alentejo (Séc. XV a XVIII) (Portugal, Edições Colibri).