A vida num mundo a haver

O que poderá ser a Vida depois do espanto que vivemos? Eis o começo da conversa. “De que vida é que está para aí a falar”, pergunta o Professor Agostinho da Silva. “Da Vida conversável, claro”, diria Henryk Siewierski, do tal mundo a haver que tanto nos fala, um novo mundo de cooperação global. De qualquer coisa melhor. Certamente não de como vamos continuar a fazer a vidinha, mas essencialmente para que é que vivemos e onde vivemos

A ideia de que vivemos num armazém de recursos, não só já não encanta ninguém, como desmoronou por completo com o susto actual. Se a pandemia evidencia factos, um dos primeiros é a interdependência (“inter- e intradependência” acrescentaria Ernst Gotsch) completa entre todos os seres.

“Que seres?”, alguém pergunta. Já lá vamos. Ora se há uma tal conexão entre todas as partes, a teoria de James Lovelock e de Lyn Margalius ganha força. Gaia. Terra Mãe. Patchamama.

Vamos lá a acordar: A Terra, Gaia, está Viva! Fazemos parte de um ser vivo! Somos um órgão do planeta! Este planeta não é apenas uma casa, é um “macro-organismo” como precisaria o Ernst novamente, muito mais complexo do que nós. Mas nós orgulhamo-nos tanto dele que nem temos uma forma de expressar de que somos daqui. Terráqueos? Então a Vida sobre que devemos conversar é a Vida da Terra e de como nos integramos e organizamos nela. Com que ética? Com que atitude? Com o quê e porquê?

Pressupondo que tudo o que participa neste macro-ser-vivo — ou seja, nós, os outros seres vivos, a matéria inanimada, a energia, os fluxos, todos os seres — interfere no todo. Tudo isto condiciona a “comunidade da vida”, como lhe chamam na América Latina. Sem esquecer a Noosfera, que nos conecta a todos através da consciência global colectiva, lembra e bem Teilhard de Chardin.

Viktor Shauberger conta esta história: em conversa com uma jovem jornalista, estava a partilhar a sua crença de como qualquer pessoa pode entender tudo por mais complexo que seja; “então explique-me lá o que é a Vida?” perguntou a jovem; o homem da floresta respondeu tranquilamente que a Vida é apenas o movimento gerado pela tensão criada por dois pólos opostos, uma vibração se se quiser, entre o positivo e o negativo ou entre o egoísmo e o altruísmo, o sol e a lua, a consciência e a escuridão tecnológica/desportiva… mas o que está por trás dessa arquitetura é outra coisa. Aí é que entra esse “Espírito Santo”, essa força complexificante que faz resplandecer a luz na matéria.

Vida não é um jogo de azar, amigos. É, se quiserem, bombada e regulada por uma energia universal evidente, independentemente de ter origem num Verbo Divino ou na organização da matéria. Porventura é a relação pessoal de cada um com a sua centelha, a expressão dessa força em cada um de nós, que nos poderá permitir uma verdadeira vivência inclusiva e ecuménica — acrescentaria o nosso Irmão Servidor — para além da paz que todos procuramos. Essa luz é a mesma que faz nascer o irmão sol, cantar os irmãos pássaros, correr a irmã água, soprar o irmão vento, como carinhosamente nos explicou São Francisco de Assis. Essa força é o Amor que faz vibrar a comunidade da Vida a que pertencemos.

“Pára, pára, pára… mas quem é que percebe isso aqui?” Ninguém, porque nós desde o Neolítico que tentamos activa e conscientemente afastarmo-nos da Comunidade da Vida, do sistema natural. Sempre a fugir: revolução industrial, revolução digital, 1, 2, 3,.. afastámo-nos cada vez mais do sistema a que pertencemos, afastamo-nos cada vez mais de nós próprios, da nossa essência que é boa.

Por essência, somos cordiais, cooperantes, criativos, autónomos, sonhadores,… é isso que temos inscrito no nosso coração, não é a competição, o egoísmo, o individualismo, que só colhem solidão. Só somos assim porque nos afastamos do sistema natural que nos criou e que nos necessita como qualquer outro órgão vital.

É a escassez e a fome resultante de não termos ainda percebido o nosso lugar que nos leva á ética da sobrevivência dos irmãos Grimm. Na verdade, a primeira prioridade de um ser vivo deve ser manter-se vivo. Mas isso só faz sentido em condições extremas.

O normal não deve ser viver fora dos limites a tentar sobreviver? Não podemos sair disso? Claro que sim. Nós e só nós criamos as circunstâncias que nos fazem maus e nos fazem ver agora: todos os Estados a olhar só para si, as farmacêuticas a lucrar sem escrúpulos, as plataformas digitais a entrar pelas nossas vidas, manipulação e mais manipulação da Vida.

Na hipótese da Comunidade da Vida, somos os responsáveis pela nossa própria miséria, apesar dos sucessivos avisos e mensagens claras que fomos recebendo desde há 4.000 anos.

O Ernst conta a seguinte historia da mitologia grega. Reunidos no Olimpo os Deuses perdem a esperança na espécie humana e elegem um deles para vir cá abaixo com um machado para nos matar. Assim acontece, e quando chega diz-nos: “Olhem humanos eu vinha com intenção de vos substituir, mas eu não sou capaz. Nós fizemos-vos com tanta dedicação, precisamos tanto de vocês… Já tentamos mostrar-vos o caminho deixando-vos sofrer, comendo o pão amassado no suor do vosso rosto, já vos enviamos mensageiros em diferentes línguas, e parece que cada vez é pior. Repetem obstinadamente os mesmos erros e sofrem, mas repetem? Em vez de vos matar com este machado, eu vou cortar-vos o cérebro em dois, para que um cérebro pergunte ao outro, todos os dias, o que é que está aqui a fazer!” Isso António Damásio já explicou.

A espécie humana, ao criar a sua própria fantasia, multiplica-se alegremente sem atender aos recursos, acelerando a fundo contra uma rampa para o céu, com se as irmãs Lolitas se lembrassem de acelerar na vertical no poço da morte.

Criamos um tsunami no sistema natural nos últimos 200 anos! É como se o planeta fosse o nosso corpo e nós o coração e, de repente, este começasse a crescer desmesuradamente implementando um plano para tomar o comando do corpo e até autonomizar-se dele.

Pois é, é nessa fantasia que vivemos. É tão ridículo que foi necessário sairmos daqui para de longe percebermos que a Terra é um organismo Vivo. Cá em baixo, ainda não descobrimos a nossa Terra, a nossa Vida. Não a conhecemos. Não percebemos a sua ética. E por isso não a amamos, não a cuidamos, não a servimos, não a presenteamos como faríamos à mãe que é. Não conseguimos entender que o outro sou eu. E assim estendemos o nosso próprio sofrimento no tempo.

A economia actual vai ao fundo porque só consumimos o necessário? O sistema natural respira como há cem anos não se via e vamos voltar ao mesmo? Porque não mudar? Criar uma aliança entre todos os humanos que se revêem nesta bio narrativa, através de um pacto como a Carta da Terra, como propõem Leonardo Boff, Mateo Castillo e tantos outros participantes nesta conversa aberta.

Experienciar, participar na maravilhosa aventura de integrar e amar a comunidade da Vida. Como? Pois, praticando exatamente os valores contrários aos valores quase exclusivos nos impérios ocidentais actuais. Parando, observando, contemplando, ouvindo, servindo, criando, celebrando, agradecendo, rezando, partilhando… contribuindo para a abundância e não para a escassez, tomando cada ser em conta, os outros humanos, mas também os outros seres vivos, a matéria, a energia, as expressões como a geometria natural… Mas muito especialmente, criando alicerces sólidos de Confiança entre todos nós e todos os elementos do sistema da Vida para que seja possível manter a chama da Esperança acesa, como percebeu Teilhard de Chardin em plena revolução chinesa, ao afirmar a necessidade de nos entendermos para iniciar em comum a tarefa de reconstruir a Terra, e assim parar de a atacar.

Cooperando, ajudando-nos uns aos outros, porque este é o único caminho que não leva à autodestruição, no cenário actual em que temos mais problemas do que capacidade para os resolver.

Temos de criar – dentro de cada um de nós – consciência. Para isso: ler, estudar, ouvir, mas essencialmente conversar com todos. Criar pois uma consciência que nos leve à acção. Ou seja, que nos permita a transição necessária para acabar com a barbaridade da economia de Chicago e nos leve de uma forma franca para um modo de vida sustentável e não para essa falácia do desenvolvimento sustentável.

Aqui, devemos fazer uma pausa e constatar que não temos na verdade soluções, temos caminhos a percorrer. Neste ponto, a conversa como por magia foi para o Sul, para onde nós levamos a tal globalização que até agora só foi a da indiferença, segundo evidencia o papa Francisco.

É essencial acabar com esta globalização da indiferença. Todos contam porque somos todos o mesmo. Não nos podemos desligar como imaginamos. Os migrantes que estão hoje no fosso de Algeciras somos nós. O nosso corpo é Gaia. O solo que destruímos é o nosso corpo.

Temos que dar visibilidade a todos estes tipos de pobreza dentro de nós. Cuidar dos outros, participar na comunidade. Dar liberdade, mais do que a nós mesmos, ao sistema natural lembra Mateo Castilho. Reinventar um novo tipo de colaboração com a vida.

Fazer: Uma reforma económica para uma economia solidária, social, do bem-viver. Uma reforma ecológica para uma verdadeira empatia com todos os seres do sistema natural. Uma reforma política que limpe e inverta a ética dos nossos representantes. Uma reforma cultural que acabe com a colonização e promova a diversidade e identidade. Mas a mais essencial será certamente uma reforma da forma de olhar para a espiritualidade entendendo e consciencializando esta dimensão.

Percebendo que é por aqui que se chega ao importante de cada um de nós, como é também por aqui que se pode interagir com a noosfera, com a consciência colectiva, com a energia complexificante. Esse caminho difícil ao encontro do nosso coração de que fala Yung, é onde encontramos os verdadeiros monstros. Implementar, pois, a lúcida proposta de Paulo Magalhães, criando um intangível jurídico global que proteja, através da economia, os limites de funcionamento da nossa casa viva.

A Terra e a Humanidade devem ser a mesma coisa. Tentar um pacto social global por esta causa, por este caminho comum. O novo paradigma é a Terra Viva, não é mais o império humano. Experienciar a tranquilidade de ser um amante apaixonado da Vida.

Neste precioso momento, a pandemia é didática, criativa, desafiante, mas não há que ter ilusões, não vai poder haver uma mudança repentina. Pelo contrário, vamos assistir a uma corrida desenfreada a mais do mesmo. Só alguns, que nos devemos esforçar por alargar, vão entender a Vida. Perez Reverte explica porquê: faltam estruturas, líderes, pessoas que alicercem esta ideia e permitam uma acção coordenada da sociedade. Estamos muito manipulados por um mundo completamente irreal.

Como nos interpela António Damásio o nosso cérebro funciona com carris. Se praticamos um tipo de Vida este cria um carril que só se contorna criando outro carril, só possível praticando outro tipo de vida. Somos aquilo em que participamos. Para além disso, agora, aqui, todos têm coisas a perder, não só os ricos.

Acreditamos sim, os envolvidos nesta conversa, que virá um Homem Novo, mas vai levar uma geração até poder fazer a diferença. Essa geração será a que sentiu e viveu os limites na pele. Que não vai ser educada e adulterada, antes, sim, incentivada ao pensamento crítico, à frugalidade, ao serviço, à autonomia, à criação. Sem entrar em detalhes, estas crianças deveriam começar nos escuteiros sendo a escola, mais tarde, vocacionada prioritariamente para a promoção da criação. Esse pode ser o grande salto promovido por um ser tão pequenino.

Uma geração de Amor à Vida. Uma nova Persona. Uma nova máscara que tenha escrito VIDA. Uma geração que volte a entender o sagrado. Que tenha como lema: Gaia sou eu. Como afirma sabiamente Leonardo Boff, se nascemos nas estrelas foi para brilhar, não foi para sofrer. Conversemos, que enquanto o fizermos, a luz iluminará essa Vida. E ficamos com este poema do Agostinho da Silva, Nosso Irmão Servidor. Se eu chegasse a ser dum Outro mas de mim não me perdendo e esse Outro todos os outros que comigo estão vivendo não só homens mas também os animais e as plantas e os minerais ou os ares e as estrelas tais e tantas terei decerto cumprido meu destino e com que sorte para gozar de uma vida já ressurecta da morte.

Alfredo Cunhal Sendim

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