“Adeus, ó terra
adeus linda serra
de neve a brilhar
Adeus, aldeia
que eu levo na ideia
não mais cá voltar”
Há dias um especialista catalão afirmava num artigo do El Pais que os “bosques” da Península Ibérica vão irremediavelmente arder todos nos próximos anos! Vão arder e arder até que a paisagem se adapte a uma nova ordem.
A actual paisagem, explica, não é compatível com a sociedade de hoje, marcadamente urbana, e por isso reage através do fogo procurando uma nova forma de existência. Talvez o professor Agostinho da Silva quisesse explorar mais esta ideia ao afirmar que “a natureza não se defende, vinga-se”. Lê-se ali também a lúcida visão de Gaia, o planeta organismo inteligente e vivo, assim como a evidência de Einstein, tão bem explicada por Skolimovski recentemente na obra La Mente Participativa que descreve como somos co-autores da evolução do universo. Ou seja, somos determinantes na evolução não apenas do que chamamos paisagem mas de muito mais. A nossa espécie não assiste, co-cria e participa, para o bem ou para o mal, para o cosmos ou para o caos.
Quando comecei a viver no campo (território praticamente abandonado que ocupa hoje 2/3 do nosso país), já lá vão 30 anos, o fogo já fazia parte do jogo, mas em ciclos muito mais longos. A cadência deste fenómeno natural aumentou de uma forma brutal desde então. Porquê? Provavelmente porque vimos ordenando a nossa casa (eco-nomia) de forma dramaticamente diferente nos últimos anos. Comportamo-nos de outra forma e grande parte da paisagem deixou de ser compatível com o nosso actual modelo. E por isso arde, como num grito desesperado de saudade que reclama o passado na procura de uma ordem futura. Nada mais natural e saudável. Normalmente chamamos a isto evolução, sempre e quando for acertiva a direcção. Ora é exactamente o rumo, perante o desastre crescente, que me parece que devemos questionar.
Sabemos hoje que apesar das boas intenções do fenómeno da industrialização da agricultura, as prestações deste modelo são crescentemente nefastas. Todos compreendemos a necessidade de estabelecer prioridades e de actuar por vezes sem ter noção das consequências, e aqui entenda-se a urgência de acabar com a miséria humana. Mas, como seres conscientes temos obrigação de evoluir.
O modelo agrícola implementado nos últimos 80 anos em Portugal, o pacote tecnológico mecânico/químico da “revolução verde” (bandeira comum do comunismo e do capitalismo) não tem viabilidade técnica em 2/3 do nosso país (nem com os eucaliptos!), pelo que promoveu uma depressão social destas regiões, bem como a falência de uma relação sábia com o território, construída ao longo de centenas de anos, que passamos a apelidar de “agricultura de subsistência”, ou seja de miséria, insultando arrogantemente os nossos mestres e antepassados. Como consequência o interior desumanizado e inviável cobre-se de matos improdutivos. A viagem da Maria Papoila simboliza para além do abandono do interior do país, o abandono de uma filosofia agrícola ancestral.
A novidade impôs-se e ditou o fim de um modelo equilibrado de verdadeira agroecologia. Mas o síndroma “Maria Papoila” não significa apenas o despovoamento e a alteração profunda do mosaico agrícola. Traduziu-se na perda de autonomia, de soberania alimentar, de eficiência e dignidade, sendo a partir de então que a decisão sobre o território passou a ser tomada em grande medida por quem não lá vive, (e ainda mais perverso) por quem não é afectado directamente pelas consequências dessas mesmas decisões. A Maria Papoila ditou a transformação do jardim à beira-mar plantado num contínuo eucaliptal-pinhal-matagal que quando pega, arde.
Se quisermos entender e alterar o fenómeno actual do fogo em Portugal, antes de olhar para o CIRESP, para a Protecção Civil, para os Bombeiros, ou para os eucaliptos, …, penso que devemos ir mais atras e entender o que significou a viagem da Maria Papoila para Lisboa.
Pouca gente gosta de grandes áreas de eucaliptos em monocultura. (Outra coisa é obviamente a espécie). Nunca vi ninguém fazer um piquenique num eucaliptal sendo que a probabilidade de isso acontecer seria alta, visto o eucalipto ser actualmente a espécie florestal que mais povoa o nosso país (mais do que a árvore nacional que é o Sobreiro). Então porque é que esta cultura (que produz papel não alimento), em vez de ocupar um lugar legítimo no mosaico agrícola diversificado do país, saltou para o domínio das nossas paisagens? A razão deve ter que ver com o facto de na maioria das nossas terras não ser possível fazer nada minimamente rentável, ou no caso de alguns ser apenas possível produzir eucaliptos. Sendo óbvio que qualquer cidadão (incluindo os agricultores) tem direito à sua dignidade, o fenómeno parece penoso, mas legítimo. No entanto, julgo que deveríamos esforçar-nos por encontrar uma outra ordem agrícola que permita uma realidade mais digna, em vez de permanentemente aceitarmos como única via a subjugação a esta cultura numa evidente atitude do síndrome de Estocolmo (síndrome do prisioneiro).
Como sempre, existem outros caminhos. Também é normal que a maioria, por razões que todos conhecemos, tenda a negar o monstro (agricultura industrial) ou insista em dominá-lo através da ilusão do mito tecnológico. Voltar à Agroecologia é hoje certamente a via mais sensata.
Ao contrário do agronegócio mecânico/químico, a Agroecologia não incentiva o fenómeno “Maria Papoila” e permite a humanização do território interior com as vantagens que daí advém. Sendo actualmente uma ciência e um método, para além de um colectivo de pessoas que a praticam quer como consumidores quer como produtores, enquanto ciência, interliga a Agronomia com a Ecologia e as Ciências Sociais.
A prática é ancestral, a mesma que a Maria Papoila deixou, enriquecida pelo conhecimento e desenvolvimento tecnológico atual. Basicamente este modelo que ainda alimenta cerca de 70 por cento dos humanos, segundo Olivier De Schutter da ONU, baseia-se em dois princípios: 1) gestão de ecossientemas complexos ordenando-os com base na compreensão das funcionalidades dos seus elementos, em oposição à simplificação dos mesmos através da sua eliminação; 2) respeito e uso dos ciclos naturais de fertilidade em alternativa ao modelo químico suportado pelos combustíveis fósseis.
Mas a Agroecologia não é apenas uma técnica, ela centra-se nas Pessoas e não no dinheiro que gera. Por que será que as Políticas Agrícolas e Alimentares das zonas “mais desenvolvidas?” do nosso planeta privilegiam o resultado económico em detrimento do que seria melhor para a nossa casa comum ou para nós mesmos?
Ou por outras palavras, como pode ser o resultado económico diferente do bem comum? O alimento não é um bem comum? O solo vivo não é um bem comum? A biodiversidade não é um bem comum? A água limpa não é um bem comum? O clima não é um bem comum? Como podemos dar-lhes o valor que a “actual economia que mata” lhes quer conferir?
Vamos ver quanto vale isso no actual mercado dizem os nossos economistas! Como podem não ser estes os nossos mais valiosos capitais?
A Maria Papoila já morreu e certamente é também a hora de outras coisas mudarem. Alterar o modelo económico é essencial, mas não chega. A forma como arrumamos a casa, mais do que nada, condiciona. Condiciona entre outras coisas o modelo agrícola, o modelo alimentar, e o modelo educativo, que são em si mesmos, peças essenciais no desafio do desenvolvimento rural de qualquer bioregião.
Ao pensar em economia lembro-me de Ruskin que nos explica a importância do principio da justiça, ou da importância de não deixar concentrar a riqueza. Este autor do século IX compara a riqueza à água. Na medida em que se concentra, só destrói, mas se se dispersar harmoniosamente gera vida. Porque não dispersar a riqueza através da justiça nas relações económicas?
Mas lembro-me também de um Shumaker que fala da importância de promover as pequenas e medias empresas, os ganhos de eficiência com mecanização de escala humana (pequena), as fontes renováveis de energia, penalizando as externalidades negativas, regular o uso indiscriminado dos recursos transferindo tecnologia entre mundos, a importância do desenvolvimento regional rural e da produção local adaptada e dimensionada num conceito de bioregião.
Por fim lembro-me do Papa Francisco e do conceito de Economia Social, economia da comunhão, economia ao serviço de todos. Porque é que as empresas tem que servir maioritariamente para enriquecer um grupo cada vez mais pequeno de pessoas?
Quanto à alimentação importa recordar que comemos como sabemos e como podemos. Sabemos pouco e podemos ainda menos com as opções centralizadas que maioritariamente dispomos. Quando vamos entender que uma comida mais vegetariana e mais crua é muito mais eficiente ecologicamente e muito melhor para a nossa saúde? Quando vamos incorporar os avanços comprovados de Michio Kushi (macrobiótica)? O que comemos parece ser chave na obtenção de um cenário de abundância.
Ao pensar em educação salto para o significado de escola, etimologicamente “tempo livre”. Lembro-me de Maria Montessori, do movimento Escolas Novas e de quem desenvolveu o movimento da Escola Moderna na Dinamarca, acreditando que temos que aprender toda a vida. Lembro-me também da Professora Ana Campos Leitão criadora do conceito da Penta-ecologia apresentado no passado ano no Congresso Internacional do Espírito Santo.
O Espírito está em tudo pelo que é importante falar dele. Inspira-me a visão do abade calabrês (Joaquin d´Fiori) e a construção da Era do Espírito Santo a que Camões chamou a “Ilha dos Amores”. A prática de Ernest Götsch na procura da nossa função no projeto universal em que estamos inseridos através da compreensão e da potenciação da natureza.
Teilhard Chardin explicando a noosfera. O alcance de sermos influenciados e de influenciar a ordem para o bem, a relação para o bem, ou seja para o espírito, tão bem desenvolvida por Agostinho da Silva na sua visão ecuménica.
Por fim, agradeço e tento trabalhar o documento mais oportuno e corajoso dos últimos tempos, a encíclica Laudate Si´ do Papa Francisco.
Parece-me com tudo isto que a Maria Papoila foi apenas um fenómeno evolucional importante para o país onde vivemos hoje em dia, pois importa sobretudo consciencializar para actuar.
Mas será possível toda esta transição na complexa estrutura em que vivemos? Aqui lembro-me de Henry Thoreau quando diz devermos fazer o que temos que fazer.
E gostava de ilustrar com um pequeno exemplo onde estou envolvido, o movimento AMAP/CSA. Trata-se de grupos de consumo, autocriados, baseados no estabelecimento de compromissos mútuos entre um grupo de consumidores e um ou mais produtores. Formam-se assim comunidades que se responsabilizam integralmente pela sua comida. Fundamentadas no relacionamento pessoal, numa gestão inclusiva, democrática, e transparente, e no tratamento do alimento como bem comum através da partilha dos riscos, da distribuição dos excedentes e da prática do modelo da Agroecologia. A partir desta fórmula, o alimento deixa de ser um produto de mercado e passa a ser um bem da responsabilidade de todos.
O programa Partilhar as Colheitas CSA Herdade do Freixo do Meio após dois anos de existência, contribuíu para a alimentação de mais de 100 famílias (incluem-se os colaboradores do projecto). Semanalmente através de um compromisso semestral, os co-produtores recebem, por um valor fixo, alimentos como pão, leite, queijo, carne de diferentes espécies (frango, vitela, borrego, porco), ovos, sopa, hortícolas, fruta…
Este movimento foi iniciado em Portugal por Samuel Tritton há mais de uma década e conta hoje com já vários programas em funcionamento, nomeadamente no Porto e em Guimarães. Foi criada este ano a rede nacional das AMAP/CSA, Repamap, com o objetivo de divulgar e promover o conceito nosso país.
Será que se nos alimentasse-mos através de Amap/Csa Portugal ardia assim?
Alfredo Cunhal Sendim
Agricultor
Referencias
Agostinho da Silva, George. A Alimentação Humana, Iniciação (1942)
Agostinho da Silva, George. Ruskin, Vos os que julgais a Terra, Antologia (1941)
Ana de Campos Leitão ” Das Utopias Teológicas as Utopias Ecológicas” (Universidade de Lisboa) Congresso Internacional do Espirito Santo, (2017)
E. F. Schumacher, Small is beautiful, (1973)
Henry David Thoreau, Walden, (1854)
Henryk Skolimiwski, La Mente Participativa, Atalanta (2016)
Maria Montessori, Metodo Avanzado Montessori (1917)
Miguel Altieri. Agroecology: The Science Of Sustainable Agriculture (1995)
Papa Francisco, A Economia de Comunhão, http://www.edc-online.org/br/home-br/eventos-internacionais/eocwiththepope/12880-video-o-papa-francisco-e-a-economia-de-comunhao.html
Papa Francisco, Laudato Si´, (2015)
Maria Papoila, filme completo