Há três meses as paragens de autocarro de Lisboa apregoavam a “Geração Sem Limites”, através de uma campanha publicitária de uma das redes que opera na prótese universal. Ora, vamos lá pensar juntos, como dizia o Agostinho da Silva, sem limites, num planeta finito já a abanar e com 8 biliões de pessoas como nós, é normal que isto não vá correr bem.
A questão é simples. Quem é que define os limites de quem? Mas antes de nos perdermos aí, porque é que não pensamos nos nossos limites, primeiro e logo a seguir não tentamos compatibilizá-los com alguns próximos de nós, na tentativa de conseguirmos organizarmo-nos em “comunidades” que giram parcelas do que “é de todos e não é de ninguém”, por forma a que o resultado beneficie os que participam.
Porque não baixar a escala para garantir a soberania criando uma verdadeira alternativa à dicotomia humana (porque não parece existir no sistema natural) dos Estados / Corporações, fugindo da fórmula do nacionalismo.
Porque que não nos organizamos para gerir os nossos ecossistemas, a nossa biodiversidade, determinamos a nossa saúde, a nossa alimentação, a nossa educação, a nossa cultura, a gastronomia, o folclore, a informação, a nossa tecnologia, a nossa moeda, a nossa vida. Deixando para o Estado apenas atividades complementares de regulação geral, de justiça e de segurança, para além da interlocução com os organismos planetários.
Na verdade, sempre o fizemos e continuamos a tentar fazer, apesar de ser cada vez mais difícil na medida em que a moda dos impérios apareceu como quase única solução para a escassez que fomos criando. Lá está, convencemos uns tantos que não há limites e vamos por aí a fora.
E o problema, claro, são os nossos limites, os dos outros. Assim criamos dois tipos de pessoas. As que se dedicam a encontrar argumentos para conseguir viver à custa do trabalho dos outros e os que trabalham subjugados para que os primeiros existam. O Estado, agora renascido das cinzas, é seguramente demasiado distante para estabelecer a confiança necessária para o salto para esse tal quinto império. A confiança perde-se de geração em geração. Confiança em nós próprios, nos próximos, nas organizações, no estado, nos “responsáveis”.
Temos que inverter a curva porque o que pode esperar um ser comunitário sem confiança? (Um psicólogo, hahaha). Como será mais fácil reconstruir a confiança, perto ou longe. A confiança, claro que ainda existe e não apenas numa última chama numa caverna perdida. Apesar do bloqueio dos estados centrais, a confiança não pára de crescer por todo o planeta através das comunidades de cidadãos, dos Comuns. Reais, virtuais, inspirados em múltiplas cosmovisões, confissões , introspecções, que formam hoje um mosaico tão colorido como sólido de realidades.
Csa´s/Amap´s (agricultura apoiada pela comunidade), movimentos de transição, eco-comunidades, oficinas comunitárias, comunidades educativas, comunidades culturais, cooperativas integrais, mútuas de saúde, seguros, crédito, habitação, bancos de horas, entre ajuda e assistência…
Este Covid-19 vai ajudar-nos a perceber a diferença clara de estar numa realidade auto-governada ou comandado por terceiros. Mas facilmente também nos pode levar à fórmula “haja quem ponha ordem, o resto não interessa” e depois acordamos governados por um Bolsonaro.
Na verdade, até agora, não tem sido assim. Nós e o resto das pessoas, em vez de sair à rua e partir tudo, temos é construído mais Comuns, o que anima a todos aqueles que encontram aqui uma forma de saírmos de uma vez por todas desta história de contarmos o número dos impérios como se estivessemos a jogar à roleta russa.
O que são então os Comuns?
Os bens comuns em si são o planeta, o património sócio-cultural-ambiental, o corpo, o urbano, o digital… Os Comuns são a gestão desses bens por comunidades que se autogovernam, criando procedimentos e regras que garantam o usufruto entre todos, e impeçam a apropriação do bem por apenas alguns. São um modelo de governança operado por uma rede de cooperantes, as suas comunidades e o planeta. São também um processo político que nos convoca a agir para além das formas estratificadas do mercado e do Estado moderno.
É também uma alternativa económica que produz no interior das comunidades (locais ou globais) relações de reciprocidade (dádiva), generosidade e solidariedade, as quais privilegiam o valor de uso ao de troca. É a vida em coletivo – sendo esse coletivo formado pelos humanos, pelas suas criações, e pelos outros seres vivos que co-habitam a Terra (ela própria um ser vivo). Ou seja, são um sistema sócio-ecológico e são uma transformação cultural de grandes proporções, como resultado de um processo alicerçado em afetos, sentidos e em espiritualidade. Um caminho prático para uma vida de alegria e imaginação.
Nos Comuns o foco é o que precisamos não o que podemos vender, o resultado é a abundância e não a escassez. A governança é policêntrica, sociocrática e meritocrática; não sendo definidas pelo Estado/Mercado, as relações sociais e o poder são descentralizados, o acesso aos recursos materiais é definido por limites e regras escolhidas pelos usuários, sendo o acesso aos recursos não materiais, aberto.
O resultado é a regeneração o do planeta e a emancipação e inclusão social.
A isto tudo também se chama Agroecologia. Também se chama Servir. Não é mais do que conseguimos manter durante milénios, por exemplo na gestão comunitária dos Lameiros.
Porque não substituímos já o Subsídio de Desemprego pelo Rendimento Mínimo Incondicional e capacitamos as pessoas para se organizarem em vez de colaborarmos com a mais baixa especulação, a do trabalho humano.
Os Comuns, dizem respeito, como sempre lembra a Marta Wengorovius, ao Um ao Dois e ao Muitos. Com facilidade perdemos as primeiras dimensões, mas talvez esteja na confiança em nós próprios e na relação com o outro a possibilidade de trabalhar com Muitos os Comuns.
No passado Setembro surgiu o interessante livro Free, Fair and Alive (David Bollier, Silke Helfrich) e também o movimento The Insurgent Power of the Commons. O professor Antonio Lafuente, amigo espanhol da nossa professora Ana Luísa Janeira, tem também desenvolvido um trabalho notável vel na comunidade ibero-americana.
Porque não somos capazes de nos governar em “estados” mais pequenos, em vez de esperar que nos governem bem para que cada um de nós possa continuar a fazer a sua vidinha? E as multinacionais, perguntará o Daniel Oliveira? Os fundos, potencialmente nos esgotamo-los com facilidade porque é o nosso comportamento alienado que permite o roubo da especulação.
Talvez agora entendamos que o valor de uso de uma máscara não é o valor de troca actual. O valor actual é um roubo hipócrita baseado naquilo a que chamamos mercado e que nos permite a todos nós praticá-lo diariamente.
Porque não fazer a máscara?
Para avançar é óbvio que temos que criar uma organização global de regulação jurídica e uma semelhante para a justiça e defesa planetária. Mas disso já o nosso Paulo Magalhães está a tratar através do projecto Comum House of Humanity, e bem.
Termino novamente com Agostinho da Silva, que pensando “no mundo a haver”, “a que não chamaremos império”, escrevia sobre essa nossa grande visão, referindo-se ao padre António Vieira “Como, por qualquer impossiblidade, não explicou como seria quanto a tudo isto, o seu Quinto Império, como haveria igualdade económica, como se faria a instrução e educação para todos, como se tornaria obsoleto isso de mandar e de obedecer, como se arquitectaria, se possível, um pensar geral que englobasse as ideologias, filosofias ou teologias das várias comunidades, não só as dos instauradores como as dos que aderissem, a nós, os de hoje, se de tal capazes, nos passou ele a tarefa”.
Não explicou o Padre nem o Mestre, mas deixaram pistas. E todas elas neste momento apontam para os Comuns.
Seremos capazes, sim.
D. Sebastião só poderemos ser nós.
Alfredo Cunhal Sendim