O Montado recriado no Freixo do Meio

Tentamos crescer para o universo como as árvores que plantamos. Participar na construção de uma vida melhor para nós, para a comunidade e para as próximas gerações. No entanto, sem raízes e sem conhecermos a nossa origem enquanto colectivo e, sem consciência do que já fizemos, corremos o risco de demorar a acertar.

Agostinho da Silva dizia que “quando algo está errado no mundo, a gente deve começar por duas coisas muito importantes, não cometermos nós mesmos o erro e verificarmos se não estamos num serviço [sociedade] que o cometa”. O Montado é para nós, Cooperativa de Usuários do Freixo do Meio, uma inspiração, e como todas todas as inspirações com um real e um imaginário. Podemos dizer que, à sua maneira, é uma utopia histórica porque apesar de ser ainda de difícil exatidão, é perfeitamente possível.

Na verdade, trata-se essencialmente da atitude humana vivida no interior centro/sul do nosso país em dois períodos: no Neolítico e, anos mais tarde, entre a época da reconquista e o fim do reinado de D. Dinis. Falamos da ética que remonta à forma como nos relacionávamos com a natureza, entre nós e com o transcendente. E, mais do que o modo como fizemos cada umas destas coisas, foi a importância da interdependência das três. Assim, em vez de construirmos o nosso projecto sem raízes, tentamos servir mais o projecto da Vida.

Aqueles momentos foram essencialmente momentos de valorizar o sagrado. Voltando a Agostinho da Silva, a preponderância atual do Civil sobre o Sagrado e da Lei sobre o Amor corrompeu a comédia do encontro do Homem com a Natureza, empurrando-nos para “a mais romana de todas as comédias”. Já o nosso plano, é outro. É o plano da Vida e não o plano da Humanidade. É a Humanidade como parte e ao serviço da Natureza. Só que para entendermos o que isso é, é seguramente importante não só conhecer mais, como entender as nossas acções e as suas consequências.

Na nossa Bio-região do Mediterrâneo já cresceu uma floresta tropical mais exuberante que a Amazónia, onde habitavam mamutes, rinocerontes, leões e outros grandes animais (Carbónico, há 300 milhões anos). Poucas dessas espécies, como o medronheiro, escaparam à extinção e conseguiram chegar e manter-se até aos dias em que este território começou a ser habitado pelos primeiros humanóides (que saibamos há 1,2 milhões de anos).

A partir daí, de braço dado com o fogo, mudámos irreversivelmente a paisagem da nossa região. Depois do aparecimento do solo e da árvore, o Homo sapiens sapiens assinala, sem dúvida, o momento mais marcante da história da Vida. Os fetos e o espargo-bravo, por exemplo, são espécies muito antigas comparadas com os sobreiros e as azinheiras que, ao que parece, são pouco mais velhos do que nós. Estes e outros seres surgiram há cerca de 10.000 anos (entre a transição do Holoceno para o Antropoceno) após a segunda glaciação, numa floresta de abundância (clímax) designada de Bosque Mediterrânico ou Silva, desta vez temperada, mas tal como a anterior, registando altos índices de biodiversidade.

Esta floresta é a nossa origem e foi a nossa casa original. Ali estabeleceram-se os primeiros “sapiens sapiens” de que temos notícia na Península Ibérica, no Neolítico, a época do Cromeleque dos Almendres, há 8.000 anos.
Na verdade, são estas primeiras comunidades do Neolítico que criam e desenvolvem o conceito do Montado ao introduzir na Silva Mediterrânica animais e plantas domésticas em número considerável. Estes povos organizavam-se em povoados, especialmente em zonas graníticas e chegaram a ser mais do que os atuais habitantes do Alentejo. Beneficiaram da novidade do pastoreio e da agricultura e integraram-nos ao já antigo trio do fogo, da caça e da recolecção. O começo do Montado enquanto sistema gozou assim de um longo período de paz e de sagrado o que é, porventura, um facto importante na sua resiliência.

Este primeiro momento que nos inspira deu lugar a uma época longa e diversa onde participaram os Estrimínios – e muitos outros povos nativos -, os Fenícios, os Celtas, os Romanos, os Gregos, os Cartagineses, os Celtiberos, os Suevos, os Visigodos, os Judeus, os Africanos e os Muçulmanos. Uma enorme concentração de diferentes visões no mesmo território e que, por diferentes caminhos, nos foram afastando da natureza. No entanto, esta miscigenação de culturas de que sempre fomos mestres transformou o Alentejo, durante a baixa Idade Média (1000 a 1400 anos), numa realidade novamente muito interessante. Após a violenta intervenção dos Romanos sobre o Bosque Mediterrânico, seguida dos Bárbaros e dos Árabes, a floresta retomou folgo ajudada por uma diminuição brusca da população rural, o que proporcionou, por sua vez, um período de abundância.

As gentes de todos estes credos que por cá ficaram nesta época, organizaram-se em pequenos aglomerados rurais. Inicialmente os casais, seguido das villas, depois os montes, e as aldeias. Todos autónomos e “independentes”, mas inter-relacionados com outros próximos, distribuídos por um território comunal caracterizado por um ecossistema de Bosque Mediterrâneo em evolução (não clímax). A relação com o ecossistema baseava-se num mosaico de fórmulas onde coabitavam a caça, a pesca, a recolha de frutos e de plantas silvestres em bosques comunais, assim como a pastorícia e a pequena e complexa agricultura dos primeiros tempos.

Os casais constituíam-se por:

0) Intus – núcleo central nascido no rossio onde se encontravam os edifícios de habitação, os religiosos, e os ofícios;
1) Hortas, pomares e linhares – anel de cultura intensiva de agrofloresta que protegia o núcleo habitacional;
2) Foris – que compreendia espaços de aproveitamento pecuário, vinha e olival;
3) Ager – terreno cultivado com cereais e forragem;
4) Saltus – bosque comunitário;
5) Mons – Áreas de difícil acesso que estabeleciam fronteiras com os Casais vizinhos.

Nem o Bill Molison desenharia melhor. Após a colonização lenta que culminou no fim da Idade Média, os casais detinham direitos específicos de utilização dos montes e bosques, nomeadamente aproveitamento silvo-pastoril e também de madeira, de utensílios, matos, frutos (como a bolota, entre muitos outros), a caça, bem como das águas (Aquas), dos moinhos e das pesqueiras que nelas se instalavam. Viveu-se com harmonia e abundância ao ritmo da natureza. Ali renasceu o Montado que, segundo descreve Ana Fonseca no trabalho “O Montado no Alentejo”, “ocorre de uma substituição de equilíbrios naturais por outros mediados pelo homem mais ou menos instáveis, mas que souberam respeitar os limites do sistema natural”.

Nesta obra, que tanto influenciou o nosso projecto, também se explica que “o sistema do Montado influenciou definitivamente a comunidade humana que o criou” não apenas nas profissões, normas e práticas, mas também na sua forma de estar. O mesmo que dizer, na sua ética. Estas pequenas comunidades viviam para si, para o colectivo e para as próximas gerações e não apenas para o indivíduo. Viveu-se em fraternidade, inclusão e compaixão. Não havia prisões, polícia, lares de terceira idade ou hospícios e a escravatura diminuiu. Havia alegria, cor, dança e, em paralelo com o árduo trabalho de servir a terra e os outros, havia muita celebração da Vida.

Foram também tempos de verdadeiro Ecumenismo sob a tutela de um Cristianismo dos pobres, dos franciscanos espirituais, que soube incluir todos os outros credos inclusive os pagãos. Foi a época das festas populares do Espírito Santo. Embora seja difícil ordenar a História, esta centelha atingiu o seu fulgor no reinado de D. Dinis, o Rei poeta e agricultor que criou as Feiras Francas e incentivou as Romarias. Neste contexto trocavam-se bens, mas essencialmente conhecimento e visões. Tempo da Rainha Santa a qual, pelo serviço aos outros, principalmente aos pobres, soube exemplificar como ninguém que o poder só pode servir para o Bem Comum. Foram tempos de respeito e de cuidado.

O que veio a seguir também interessa, pois após a colonização por ordens religiosas e nobres do norte, vieram os impostos, as cruzadas, o poder, os dogmas, a guerra, a peste, a mudança climática – o período frio do fim da Idade Média – e a atitude voltou, novamente, a mudar.

São estes dois distantes momentos da nossa História que inspiram o atual projecto do Montado do Freixo do Meio. O Parque Natural do Montado é a nossa casa. É o sistema que nos mantém e que servimos o melhor que sabemos e podemos. É assim que enquadramos a nossa relação com a natureza. No campo social, a experiência assenta na recriação do sentido de Comunidade e de Cooperação, através da Cooperativa de Usuários do Freixo do Meio, do Programa CSA “Partilhar as Colheitas” e do caminho da participação e construção colectiva da Sociocracia. A conexão com o Universo e com o Nada que é Tudo, entendemo-la como essencial mas de responsabilidade individual. Por esse motivo, tentamos promover apenas diversas formas complementares de desenvolvimento muito inspiradas no legado de Agostinho da Silva.

A bolota para consumo humano constitui o nosso símbolo e a visão da Agrofloresta de sucessão dinâmica desenvolvida por Ernst Götsch, o nosso caminho.

Alfredo Cunhal Sendim
Agricultor
Coordenador Cooperativa de Usuários do Freixo do Meio

Bibliografia

CORTAZAR, José Angel Garcia de; CORTAZAR, Fernando Garcia de. História Rural Medieval. Editorial Estampa, 1996

FONSECA, Ana. O montado no Alentejo (Século XV a XVIII). Edições Colibri, 2004

GOMES, Carlos J. Pinto et al. Paisagens Arqueológicas a Oeste de Évora. Câmara Municipal de Évora, 1997

NATIVIDADE, Joaquim Vieira de. Subericultura. Ministerio de Economia, DGSFA, 1950

SILVA, Agostinho da. Vida Conversável. Assírio & Alvim, 1994

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